segunda-feira, 31/03/2025
Departamento de Matemática da Escola de Ciências da UMinho
Natural de
Chelo, freguesia de Lorvão, no concelho de Penacova, Rui Manuel Silva Ralha
construiu uma carreira notável no ensino e na investigação em Matemática. Com
um percurso académico iniciado na Universidade de Coimbra e consolidado em
instituições como a Universidade da Beira Interior e a Universidade do Minho,
onde se aposentou, o professor e investigador acompanhou de perto as
transformações no ensino da matemática e os avanços científicos na área. Nesta
entrevista, partilha a sua trajetória, os desafios da docência e da
investigação, a importância da matemática na era da inteligência artificial e
alguns conselhos para as futuras gerações de matemáticos.
“Se
retirássemos da nossa vida tudo o que envolveu a matemática na sua conceção e
desenvolvimento, regressaríamos à vida nas cavernas”.
O que o
levou a escolher Matemática como área de estudo e carreira?
A escolha do
curso superior não foi uma decisão fácil, embora a matemática fosse uma das
minhas disciplinas preferidas no ensino secundário. O que eu tinha claro era
que seria um curso da área das Ciências. Curiosamente, em resultado de uma
bateria de testes psicotécnicos de orientação profissional que fiz então,
foi-me dito que o curso de Direito era uma possibilidade que eu devia considerar
seriamente. Um dos testes consistia em comentar (por escrito) afirmações como
“o homem que escreveu os Lusíadas não foi Luís de Camões, mas sim outro homem
que também se chamava Luís de Camões”. Já não me recordo do que escrevi, mas
devo ter mostrado algumas capacidades de argumentação.
Como
foi a sua experiência como estudante universitário? Teve algum professor que o
influenciasse na escolha do seu percurso?
Obtive
o grau de licenciado em matemática (ramo ensino) em 1981 pela Universidade de
Coimbra. Os três primeiros anos curriculares da Licenciatura em Matemática
constituíam um tronco comum a dois ramos, o científico e o de ensino. Iniciei o
quarto ano no ramo científico, mas no final do primeiro semestre pedi
transferência para o ramo de ensino: tive de fazer exames extraordinários de
unidades curriculares, do 1º semestre, das áreas da metodologia da matemática e
da psicologia. No ano seguinte, completei a licenciatura com o estágio
profissional na Escola Secundária Avelar
Brotero, em Coimbra. O ramo científico era a escolha natural para aqueles que,
como eu, almejavam uma carreira no ensino superior, mas o estágio no ramo de
ensino era remunerado (os estagiários já tinham vínculo com o Ministério da
Educação). Tive muitos professores
que recordo com saudade.
Iniciou
a carreira como docente no ensino secundário, mais concretamente na Escola
Secundária de Avelar Brotero, em Coimbra. Como foi esta experiência? O que
recorda dessa altura?
Éramos
cinco estagiários, cada um dos quais responsável por uma turma do ensino básico
(7º ano) e outra do ensino secundário (10ºano). A nossa atividade era
acompanhada por dois professores muito experientes, um da Escola (orientador
pedagógico) e outro da Universidade (da Matemática). Os estagiários assistiam a aulas dos colegas
e também a aulas do orientador pedagógico. Este também assistia a aulas dos
estagiários. A rotina diária incluía discussões sobre os temas lecionados e as
abordagens pedagógicas e também sobre os comportamentos dos alunos na sala de
aula. Foi um ano de trabalho intenso e cheio de emoções (nasceu a minha filha e
a minha esposa fazia parte do nosso grupo de estagiários).
No ano
seguinte continuámos na Escola Avelar Brotero, agora já profissionalizados e
com horários completos. Uma das minhas turmas era formada por estudantes com
deficiências. Um deles, surdo profundo, já tinha sido meu aluno no ano anterior
(o de estágio), integrado numa turma normal, e teve um desempenho notável.
Outra das turmas foi em horário pós-laboral para trabalhadores estudantes.
Estes dois anos iniciais da minha carreira de professor não foram desafiantes
do ponto de vista científico, mas riquíssimos do ponto de vista da minha
formação pedagógica.
A sua carreira no Ensino
Superior começou no Departamento de Matemática/Informática do Instituto
Universitário da Beira Interior (atualmente Universidade da Beira Interior) em
1982, onde se manteve até 1994. O que o motivou a seguir uma carreira na academia?
Terminados os dois anos de serviço referidos antes,
decidimos rumar ao Tortosendo (de onde a minha esposa é natural). Conseguimos
lugares do quadro na Escola Secundária do Fundão, mas ocupámos o lugar durante
pouco tempo. O IUBI estava a recrutar docentes e foi a oportunidade de
ingressar, como era nosso desejo, no ensino superior. Queríamos fazer
investigação e enfrentar novos desafios. Fomos contratados como
assistentes-estagiários do Departamento de Matemática/Informática. A passagem a
assistente aconteceu poucos anos depois com a realização das provas de aptidão
pedagógica e capacidade científica. Seguiu-se o doutoramento em Inglaterra.
Foi nessa altura que veio
para a Escola de Ciências da UMinho, para o Departamento de Matemática onde se
manteve até se aposentar. Como foi a sua chegada à Universidade do Minho? O que
mais o marcou nos primeiros anos como professor/investigador?
A convite da saudosa professora Maria Raquel Valença,
no ano letivo de 1993/94, ainda professor na UBI, integrei o corpo docente do
Mestrado em Matemática Computacional. Foi a oportunidade de lecionar conteúdos
relacionados com a minha área de investigação, os algoritmos numéricos e a
computação paralela. Também iniciei a orientação da minha primeira estudante de
doutoramento (Maria Antónia Forjaz). No ano seguinte iniciei funções na UMinho
como membro do Departamento de Matemática e do Centro de Matemática. Encarei
esta mudança com entusiasmo. Foi motivadora a lecionação na Licenciatura em
Matemática e Ciências da Computação e sobretudo no Mestrado em Matemática
Computacional, em cujo âmbito orientei várias teses.
Quais foram
os principais desafios que encontrou ao longo da carreira?
Sem dúvida,
um desafio permanente foi a procura do equilíbrio do tempo dedicado ao ensino,
à investigação e aos muitos cargos de gestão que assumi.
Que mudanças
mais significativas observou na universidade e no ensino da matemática ao longo
dos anos?
São duas perguntas muito diferentes, sendo que a
primeira é mais complexa e à qual darei uma resposta muito geral. Direi apenas
que as universidades públicas em Portugal têm procurado reinventar-se por forma
a, com recursos materiais e humanos insuficientes, continuar a assegurar as
missões de ensino, de produção de conhecimento e de interação com a sociedade.
Tudo isto num contexto de maiores exigências ditadas por agências de avaliação
nacionais e internacionais.
Relativamente à segunda questão, os desenvolvimentos
nas tecnologias da informação têm tido um enorme impacto em todas as áreas de
atividade humana e o ensino não é exceção. Basta recordar como foram
importantes as aulas on-line quando a pandemia do covid-19 encerrou as escolas.
As aulas em laboratório de computação não substituem as aulas teóricas, mas têm
ganho espaço nos horários num número crescente de unidades curriculares.
Finalmente, é difícil prever o verdadeiro impacto que os desenvolvimentos mais
recentes (a inteligência artificial) vão ter no ensino em geral e no ensino da
matemática, em particular.
Investiga várias áreas, com
destaque para a análise numérica, a álgebra linear e a computação científica,
que têm conhecido grandes desenvolvimentos nos últimos anos. Como vê a
importância da matemática na era da inteligência artificial e do deep
learning?
A matemática está nos algoritmos de aprendizagem
usados nas redes neurais e em muitos outros modelos computacionais usados na
chamada inteligência artificial. Uma rede neural sem algoritmos não faz nada,
tal como um computador sem software não funciona. A propósito da importância da
matemática no desenvolvimento do software, sugiro a leitura do livro de Bill
Gates com o título “Código-Fonte/> O meu começo”, publicado em janeiro. É um
relato das memórias da juventude do autor, em particular aquelas que dizem
respeito à criação da Microsoft.
De
que forma é que a matemática está presente no nosso quotidiano?
Se
retirássemos da nossa vida tudo o que envolveu a matemática na sua conceção e
desenvolvimento, regressaríamos à vida nas cavernas. Sem telemóveis nem
Internet (sem os quais vivi uma grande parte da minha vida), por exemplo. Todas
as conquistas devidas às Ciências e à Engenharia envolveram matemática (que não
é visível para a maioria das pessoas) e é por esta razão que os cursos
superiores destas áreas incluem um conjunto de unidades curriculares de
matemática.
Apesar desta presença constante e evidente, considera que ainda é uma
disciplina considerada por vezes como “um bicho de sete cabeças”?
Para
muitos será. Mas essas mesmas pessoas também poderiam provavelmente dizer o
mesmo da Física ou da Química, por exemplo. Se compararmos as médias nacionais
dos exames ao longo dos últimos anos, constatamos que a matemática nem sempre
tem a pior nota.
O
ensino e os programas têm vindo a mudar e a adotar outras estratégias para
tornar a disciplina “mais apelativa”. O que poderia ser feito a nível
governamental, por exemplo, na sua opinião? Que
recomendações daria para o futuro da investigação e ensino da matemática em
Portugal?
As
calculadoras gráficas há muito que são usadas, inclusivamente nos exames. O uso
de computadores nas escolas é uma realidade em Portugal, mas com intensidades e
formas que diferem de escola para escola e, dentro da mesma escola, de
professor para professor. Estas ferramentas têm capacidades que podem tornar o
ensino mais dinâmico e apelativo para os estudantes, por exemplo através da
visualização de gráficos de funções ou da utilização de programas de análise de
dados. Mas devem ser usadas apenas naquelas tarefas que claramente não podem
realizadas de forma eficaz usando apenas lápis, papel e “cabeça”. A qualidade
do ensino continua, hoje como dantes, a depender essencialmente da qualidade
dos professores. Por esta razão, deve ser uma preocupação fundamental dos
governos a monitorização e avaliação do modelo de formação de professores. Relativamente
aos programas, penso que as mudanças têm ocorrido com demasiada frequência,
alternando entre a opção de uma matemática mais formal e outra que dá mais
importância à intuição e à experimentação.
A
investigação é uma atividade que requer tempo, muito tempo. As aulas não podem
esperar, as tarefas de avaliação tão pouco e quando esta carga aumenta fica
menos tempo para a investigação. No meu
Departamento e na minha Escola esta carga aumentou nos últimos anos porque os
recursos humanos diminuíram. Os meus votos são os de se criem condições para
que este ciclo de redução dê lugar brevemente a um ciclo de crescimento.
Apesar de estar aposentado, continua a partilhar o seu conhecimento e a
participar em eventos organizado, inclusivamente pela ECUM. Continua
envolvido em projetos científicos ou académicos?
Sou membro
do grupo ALC (Álgebra, Lógica e Computação) do Centro de Matemática. A minha
área ainda é a dos algoritmos numéricos. Acompanho com muito interesse o
desenvolvimento da inteligência artificial.
Que
conselhos daria aos estudantes que querem seguir uma carreira na matemática ou
na investigação na área?
Trabalhem
muito, ponderem bem a escolha da área de investigação a seguir, falem com os
professores e os colegas sobre as vossas dúvidas quanto às escolhas a fazer,
aproveitem todas as oportunidades para participar em encontros científicos e
falar com investigadores, sobretudo os mais credenciados. E não se esqueçam de
desenvolver as vossas capacidades de comunicação falada e escrita em inglês.