Ao longo das últimas décadas tem havido um consenso bastante alargado sobre a importância da ciência enquanto ferramenta de desenvolvimento humano e social. Este consenso tem vindo, em geral, a ser partilhado pela classe política portuguesa, ainda que nem sempre traduzido na devida proporção em recursos alocados ao sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (e.g. O Futuro da Ciência e da Universidade, obra coordenada por Maria de Lurdes Rodrigues e Jorge Costa, Almedina, 2023). Mesmo com esta relativa dissociação entre teoria e prática política, parece-me evidente que a perceção positiva em termos da opinião pública e publicada é algo de muito relevante para a nossa sociedade, desde logo porque traduz a importância do conhecimento enquanto elemento emancipador e de progresso.
Podemos, inclusivamente, afirmar que a crise pandémica de 2020-23 veio demonstrar a importância do conhecimento científico e quão críticas para a humanidade podem ser as suas aplicações tecnológicas. Afinal, o desenvolvimento das vacinas que nos permitiram limitar largamente o impacto da pandemia só foram possíveis porque havia décadas de investigação fundamental cuja potencial aplicação nem sempre tinha sido óbvia. Os mais otimistas terão, porventura, assumido que esta história seria suficientemente ilustrativa da importância do conhecimento científico para que o seu efeito perdurasse durante anos na nossa memória coletiva.
No entanto, vivemos tempos em que as mensagens importantes se sucedem com uma velocidade estonteante e não é certo que as lições aprendidas tenham sobrevivido à espuma dos dias e a todas as preocupações que se sucederam. O que parecia um impacto duradouro rapidamente foi consumido por outras crises e ameaças. E constatamos que se verifica uma nova deriva utilitarista, em que se quer ver resultados sem permitir que estes possam estar ancorados numa base sólida e, quase inevitavelmente, lenta. Ouvimos cada vez mais nítidas as vozes que se supunham só existir no passado. Vozes que questionam a importância do conhecimento, quando não o combatem explicitamente.
Há que reconhecer que vivemos em sociedades complexas - e ainda bem que assim é, pois beneficiamos largamente dos frutos dessa complexidade. E as políticas científicas não existem fora do mundo, sendo obviamente condicionadas por este. Podemos advogar convictamente a importância da ciência e do conhecimento e, ao mesmo tempo, sem contradição, rever-nos na angústia da fala do velho do restelo ao astronauta, de José Saramago, em que se relembra que aqui, na Terra, a fome continua.
É perfeitamente natural que a sociedade procure entender qual o retorno prático do investimento que faz em ciência. É também compreensível que os cientistas reajam a essa expectativa social destacando as aplicações existentes e potenciais da investigação que fazem. Mas convém que todos - cientistas e cidadãos - compreendamos que a tecnologia e a inovação não existem no vazio. Não podemos querer ter árvores frondosas e não nos lembrarmos de cuidar das suas raízes, muitas vezes invisíveis.
Mas, na verdade, creio que o problema subjacente é mais profundo. Ao vender a ciência pelas suas aplicações esquecemo-nos, quase sempre, de explicar o método científico. O processo que leva à expansão do conhecimento científico implica, com frequência, falhar repetidamente. Se nos concentramos apenas nas soluções encontradas, em versão chave na mão, não nos podemos queixar que seja isso que a sociedade espera da ciência.
Nos tempos convulsos que parecem avizinhar-se, a importância do conhecimento, e do conhecimento científico em particular, é particularmente crítica. Neste contexto, iniciativas como as da Escola de Ciências da Universidade do Minho, que, no âmbito das comemorações dos seus 50 anos, irá debater o valor intrínseco da ciência, são muito bem-vindas. Saibamos nós, cientistas, estimular este diálogo com a sociedade. Não nos iludamos sobre as consequências nefastas de permanecermos em silêncio ou, pior ainda, de nos perdermos no ruído dominante.
Link para o artigo no Público https://www.publico.pt/2025/02/21/opiniao/opiniao/fazemos-ciencia-2123111